domingo, 8 de agosto de 2010

Seria surpresa?

Quando o estado do País nos tortura os sentidos, somos obrigados a accionar através da escrita o escape de emoções que nos vai gerindo os impulsos.
Esta será tanto mais violenta e expressiva, quanto menos respostas obtemos aos nossos anseios e dúvidas e menos vemos no horizonte quaisquer lampejos de inconformismo ou vontade de reacção.
Começamos mesmo a ter dúvidas nas análises e interpretações que fazemos, pois perante tal descalabro se calhar somos nós que não temos a visão acertada dos factos e deveríamos ser obrigados a aceitar que a realidade existente não é aquela contra a qual nos batemos.
Hoje deparei-me com este terrível estado de espírito!
Será que este País está perfeitamente inserido no Espaço Europeu em que se integra?
Será que se corrigiram as assimetrias Regionais que nos caracterizavam?
Será que o Desenvolvimento Económico equilibrou as Balanças de Transações?
Será que a Taxa de crescimento já se equivale à dos restantes Países?
E a divida externa diminuiu?
E a justiça é efectiva e um modelo de referência?
E a acção politica é garantia de seriedade?
E os desiquilibrios sociais estão resolvidos?
E o emprego está já em forte crescimento?
E este Povo é Feliz?

Aqui tive que parar e fui até à janela espairecer. Por momentos estava a passar-me pela cabeça qualquer coisa estranha. Uma espécie de arrepio. Volto á escrita e vem-me novamente a pergunta.
Será que este Povo é feliz?
Os momentos de tensão e duvida perante esta possibilidade, aconselham a não aprofundarmos muito este aspecto, pois temo que a resposta possa ser aquela que não deveria ser.
Somos um Povo com uma identidade muito difusa e demasiado dispersa por diversos campos, o que tem facilitado a vida àqueles que têm estado nas cúpulas do dirigismo.
Ainda continuamos a ouvir frases tais como, felizes dos pobres de espírito, pois será deles o reino dos céus!
Ou quando apostolados parecidos com este são aplicados à acção politica, podem perfeitamente acomodar as pessoas ao sofrimento e á resignação, pois quando questionadas sobre a acção politica ouve-se muitas vezes, se eles não fazem mais é porque não podem!
Esta e outras grandes fatias deste povo não sabem sequer o que são a Cova da Beira, a Face Oculta ou o Freeport, ou o funcionamento da justiça, etc.

Outra parte importante, é aquela que conhece bem os caminhos para os Centros de Desemprego ou da Segurança Social, onde vão garantir aqueles mínimos para irem sobrevivendo. E para estes, esta gente que contestamos até serve muito bem, pois, vale mais pouco e garantido, do que estar á espera que outros façam melhor!
Se juntarmos a estas fatias, grande parte do funcionalismo publico e privado que receia sempre os ventos de mudança e prefere ignorar ou não se imiscuir nas resultantes da acção politica, acabamos por ter a quase totalidade de um País nas mãos.
Aqui chegados, a única coisa que deveremos ter sempre presente é que há perguntas que será melhor não as fazer, pois embora a resposta pudesse não ser sincera, seria sempre tida como verdadeira.
Isto, permite-nos pelo menos perguntar se poderemos estar perante uma aberração de País e de gentes?
É que se assim fosse nós não gostariamos, não é verdade ?

posto por Carlos Luis

2 comentários:

Diogo disse...

É bom lembrar que a única informação que chega a uma elevada percentagem dos cidadãos são os «telejornais» e as telenovelas.

JotaB disse...

Amigo Carlos
Tenho estado de férias, mas não resisto a uma incursão pela leitura dos seus “escritos”.
Deixo aqui uma “carta” muito bonita, escrita por Saramago à sua avó e que acaba por explicar muito daquilo que somos.
Um abraço.
João


CARTA PARA JOSEFA, MINHA AVÓ

Tens noventa anos.És velha, dolorida.Dizes-me que foste a mais bela rapariga
do teu tempo - e eu acredito. Não sabes ler.Tens as mãos grossas e
deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e
lenha, albufeiras de água.Viste nascer o Sol todos os dias.De todo o pão que
amassaste se faria um banquete universal!Criaste pessoas e gado, meteste os
bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los.Contaste-me
histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de
morte.Trave da tua casa, lume da tua lareira sete vezes engravidaste, sete
vezes deste à luz.
Não sabes nada do Mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de
literatura, nem de filosofia, nem de religião.Herdaste umas centenas de
palavras práticas, um vocabulário elementar.Com isto viveste e vais
vivendo.És sensível às catástrofes e também aos casos da rua, aos casamentos
de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha.Tens grandes ódios por
motivos de que já perdeste lembrança, grandes dedicações que assentam em
coisa nenhuma.Vives.Para ti, a palavra Vietnam é apenas um som bárbaro que
não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio.Da fome sabes alguma
coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja.(Contaste-me tu,
ou terei sonhado que o contavas?...) Transportas contigo o teu pequeno
casulo de interesses.E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre.O teu
riso é como um foguete de cores.Como tu, não vi rir ninguém.
Estou diante de ti e não entendo.Sou da tua carne e do teu sangue, mas não
entendo.Vieste a este Mundo e não curaste de saber o que é o Mundo.Chegas ao
fim da vida, e o Mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma
interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não fazia parte da tua
herança: quinhentas palavras, um quintal, a que em cinco minutos se dá a
volta, uma casa de telha vã e chão de terra batida.Aperto a tua mão calosa,
passo a minha mão pela tua face enrugada e pelos teus cabelos brancos,
partidos pelo peso dos carregos- e continuo a não entender.Foste bela,
dizes, e bem vejo que és inteligente.Porque foi então que te roubaram o
mundo? Quem to roubou? Mas disto entendo eu, e dir-te-ia o como, o porquê e
o quando se soubesses compreender.Já não vale a pena.O mundo continuará sem
ti- e sem mim.Não teremos dito um ao outro o que mais importava.
Não teremos realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não
são as tuas, o mundo que te era devido.Fico com esta culpa de que me não
acusas- e isso ainda é pior.Mas porquê, avó, porque te sentas tu na soleira
da porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada
sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores
assombradas, e dizes com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o
fogo da tua adolescência nunca perdida: "O mundo é tão bonito, e eu tenho
tanta pena de morrer!"
É isto que eu não entendo- mas a culpa não é tua.

José Saramago