quinta-feira, 15 de abril de 2010

De olhos trocados

7h e 23 minutos da manhã. Passo rápido porque o tempo ameaça chuva. O cidadão dobra a esquina e pára na primeira banca de jornais. É uma paragem habitual.
Chama-se José Costa e é um velho conhecido do vendedor.
Primeiro as noticias desportivas.
Como o campeão está encontrado, ambos se mostram satisfeitos. São do mesmo clube.
A seguir vê os titulos das outras pois não ganha para comprar jornais. Trocam apenas um comentário conjunto. A merda continua na mesma.
Segue a pé para o trabalho, junto á Assembleia. É empregado de balcão. Tem 58 anos e ganha 560 Euros mês.
Espera ansioso pelos 65 para ver se vem a reforma. Trabalha desde os 12 anos.

10h e 15 minutos. Chega á banca um cliente habitual, de nome Joaquim Rocha, mais conhecido pelo comendador e assim tratado pelo ardina que lhe dispensa mesmo alguma reverência.
Até existe uma razão para tal.
Pertence á "numenclatura" instalada e o vendedor há muito que o sabe.
Mesmo sem ser uma grande figura, o homem dá sempre ares disso e faz sentir todas as manhãs a sua presença.
Tem uma missão. Ele já conhece as noticias do dia e não lhe agrada ter de voltar a ouvir a repetição das mesmas. Mas alguém tem que esclarecer quem vende toda esta "falsa informação". Há meses que anda nisto.
Já tudo o incomoda e não fosse o emprego chorudo que lhe arranjaram já tinha desistido. Mas um vencimento de 4.270Euros por mês não pode ser descurado. Diz-se socialista e assim o proclama.
E tem a reforma garantida dentro de pouco tempo. Já trabalha há 6 anos para o partido.

Diga-se em abono da verdade que lhe custa bastante suportar os olhares de malícia que o ardina sorrateiramente lhe dispensa.
Mais lhe custa ainda quando ele lhe chama a atenção para aquilo que ele já sabe. Sobretudo a forma como o diz.
Senhor comendador, as cabalas contra o "nosso" primeiro continuam.
Ouvir aquilo é porem-lhe ferro em brasa nas mãos.
O ardina sabe e continua. Já viu o Correio da manhã de hoje? Agora também querem meter ao barulho o gabinete do nosso primeiro. Não há duvida que somos um País de invejosos.
Já viu que até o Penedos parece que está a querer fazer fora do bacio!!
Diz que não quer que destruam as escutas. Já ouviu falar nisso?
Aquilo é desgastante para o "comendador".
Ele sabe o que o "chefe" espera dele, pois não é por acaso que está em S.Bento.
Assim sendo, esforça-se por esclarecer as coisas, na esperança que o ardina se convença com as explicações que quase diariamente lá tem que ir fazer.

Os 42 anos de vida que já tem, não evidenciam os "sacrifícios" que vem fazendo. Os fatos são de bom corte e a postura é conveniente.
Veio da Beira Interior há quase 30 anos e passou por diversos empregos menores até ter chegado a S.Bento. Não tinha grandes qualificações, pois apenas possuía a escolaridade básica. Teve a sorte de conhecer e ser amigo de um tal Vara, que rapidamente lhe explicou como tirar um curso superior.
Não foi fácil e levou mesmo alguns meses a concluí-lo. Mas como era esperto e tinha sentido de aventura aceitou o desafio para ser assessor. Hoje está bem de vida.
Vê-se que é um homem escolhido a rigor para a função. Mas o "facies" denota bem as origens. Foi trazido para a cidade por um tal Silva Pereira, que veio da mesma aldeia onde ambos nasceram. Eram então conhecidos pelos "bosta de vaca". Só mais tarde se percebeu bem o porquê desta alcunha.
Quando o "primeiro" precisou de alguèm por perto que soubesse mexer na merda que vinha fazendo, sabia bem onde encontrar. O critério de escolha do Rocha estava justificado. O homem tinha nascido para aquilo e o cheiro nunca o incomodava.

Ás 10.48 pára na pastelaria onde trabalha o José Costa. Passa os olhos pelos jornais que foi buscar. Depois de almoço encerra o trabalho, pois não saiem jornais á tarde.
Mesmo assim ainda há quem o critique dizendo que não faz nada. Sempre a mesma inveja.

Ás 19 horas o José Costa deixa a pastelaria e segue para casa, na Arrentela, onde chega por volta das 21 horas.
Continua sem perceber aquilo que lhe disseram há 35 anos. Que ia passar a viver num País mais justo e solidário, onde as injustiças e os desníveis sociais iriam terminar.
Para já só espera que o negócio se aguente e ele possa ir mantendo o emprego.
Sabe que o senhor socrates se preocupa com ele. O dr. Rocha já lhe explicou isso muitas vezes.

Chegámos assim a;
Um País, dois homens, destinos diferentes.
Um governo, uma ideologia, dois países.
Uma vergonha, um socialismo, a grande corrupção.
A afronta, a ignomínia, o despudor.
Vamos continuar a permitir que os Varas, os Pereiras, os Socrates, desfaçam os conceitos de Dignidade e Justiça que se incorporam na palavra socialismo?
Acabemos quanto antes com estes homens, este País e esta Desgraça.
Se não, eles aos poucos vão acabar connosco.

posto por Carlos Luis

5 comentários:

PR disse...

Bom texto.

Fiquei a conhecer ontem este blog. Gostei. Voltarei!

Abraços e muita força
PR

JotaB disse...

Tudo indica que iremos, inevitavelmente, sucumbir primeiro do que esses trastes.
Iremos morrer à fome, pois nem sequer temos a coragem de decepar a mão que nos entra nos bolsos. Esse movimento já é executado com toda a confiança e já não aguarda que desviemos o olhar, envergonhados, mas incapazes de qualquer gesto de revolta, enquanto nos roubam o pouco que ainda nos resta.
Somos gente sem vontade, que há muito deixou de ter coluna vertebral e que irá continuar a pagar o tributo aos mafiosos.

JotaB disse...

Pareceu-me apropriado este artigo publicado no Jornal de Leiria de ontem.
Poderá ser mais uma achega para o despertar do torpor em que nos encontramos e uma ajuda para a formação de uma consciência colectiva de revolta.

"SEISCENTOS MIL
Seiscentos mil desempregados. Ou
10,3%. De qualquer modo, números.
Sem nome, sem rosto, sem
identidade, apenas números.
Números, frios e impessoais que
enchem as resmas de papel cuspidas pelas
impressoras de um instituto qualquer, gerido
por um grupo de administradores nomeados
pelo Estado que, para os analisar, cria
uma comissão para estudar o fenómeno, a
fim de permitir o nascimento de um grupo
de trabalho que irá, supostamente, propor
soluções. Que poderão passar, talvez, pelo
advento de um novo ministério, com as consequentes
secretarias de estado, assessores,
consultores, comissões e, quem sabe, mais
um ou dois institutos com as respectivas
impressoras a vergastar o papel com os
números e gráficos que nos elucidam da
dimensão e dos contornos da nossa infelicidade.
Estado, ministérios, institutos, comissões
e grupos que esquecem que o n.º 329 423
se chama Alfredo, que tem mulher e dois
filhos e acaba de entregar as chaves do T3
ao mesmo gestor de conta que, há quatro
anos, lhe disse, com os cantos da boca
pendurados nas orelhas: – Meu caro amigo,
o seu empréstimo foi aprovado. Os cartões
de crédito, seu e da esposa, anuidade
grátis… – e que agora, muito menos feliz,
lhe transmite que o banco nada pode fazer,
porque o incumprimento, não obstante a
lamentável situação, cartões cancelados,
muita pena…
Estado, ministérios, institutos, comissões
e grupos que não se vão lembrar que a moratória,
para o n.º 410 425, o João, de nada
serve. Porque aos 57 anos, o desemprego e
a ausência de perspectivas para o resolver,
transformam qualquer moratória numa palmatória
dolorosa, a juntar às outras que não
param de fustigá-lo.
Estado, ministérios, institutos, comissões
e grupos que nem vão perder tempo a pensar
na n.º 274 967, que recebe o subsídio
social, pouco mais de 14 euros por dia. Luísa,
que tem olhos, sentimentos, barriga, doenças
e emoções e que pensa, pouco mais pode
fazer, aliás, do que pensar, solidária, na canseira
que o Sr. Dr. Mexia terá, para arranjar
forma de sobreviver com 10 000 euros diários
(416 euros, por hora, tal qual o que a
desocupada n.º 274 967 dispõe, por enquanto,
para sobreviver na vertigem de cada mês).
Ou na infelicidade que bateu à porta do Sr.
Dr. Zeinal, que terá, provavelmente de recorrer
ao Banco Alimentar Contra a Fartura,
porque dispõe apenas de 6 900 euros para
fazer face às despesas de cada 24 horas, 500
vezes mais do que a Luísa tem, no mesmo
período de tempo, para, inevitavelmente,
passar a maior parte dele, a pensar, fechando
os olhos, digerindo os sentimentos na
barriga onde se embrulham as emoções que
a põem doente. Ou ainda, na pouca sorte que
bateu à porta do Sr. Dr. Granadeiro e do, não
menos Sr. Dr. Rui Soares, ambos submetidos
à intensa provação de gastar, em cada
dia que passa, pouco de mais de 4 000 euros,
o que significa que, podem despender em
cada 6 minutos o que a Luísa possui, por dia
para, certamente, meditar, de olhos bem abertos,
sem perceber os sentimentos, com a fome
a doer-lhe na barriga e a acordar-lhe emoções
que julgava adormecidas.
Números, insensíveis e desumanos, estatísticas
que nos reduzem ao estatuto de enteados
de um deus maior. Seiscentos mil ou
10,3%. Afinal, tanto faz...

CARLOS PRETO
desempregado certificado"

Força Emergente disse...

Caro João

Excelente artigo, que espelha bem a situação para que caminhamos a passos largos.
Pelo vistos o Jornal de Leiria dispõe de grandes comentadores.
Que não se perca essa gente.
Mais dia menos dia vamos ter que nos juntar.
É certo que ainda teremos de esperar pela "dor de barriga". Mas se calhar o aceleramento irá ser inevitável.
Depois, como diz o outro, seja o que deus quizer. Só esperamos que não tenha os olhos trocados.

anti-aderente disse...

Mas... engraçado é mesmo, ver/ouvir certos comentadores contratados das TV´s a justificar os "salários" de alguns destes pobres iluminados, comparando-os aos seus congéneres europeus e não só...
Mas... afinal só estes (produtivos/gestores) é que merecem comparação? Então e para os (outros) trabalhadores, não se usa da mesma bitola? Ah, aqui já se recorre à pobreza da nossa economia, à falta de produtividade, blá, blá, blá... Claro!
Mas esta "gente" não compreende que isto só pode acabar mal?! Lá diz o velho... "não há mal que sempre dure nem bem que não se acabe"... mal, muito mal, diria eu.